Para chegar à primeira descrição documentada da enxaqueca, foi necessário esperar por Areteo da Capadócia, que viveu no século II depois de Cristo e que a descreveu como um distúrbio constituído por uma dor num dos lados da cabeça, recorrente a intervalos regulares e acompanhada de vómitos e de uma fotosensibilidade anormal. Um estado que podia ser parcialmente aliviado colocando o indivíduo em sofrimento num ambiente escuro.
Meio século depois, Galeno, anatomista grego, colocou a hipótese das cefaleias serem o resultado de vapores nocivos, emanados por alguns órgãos do corpo, conceito que foi considerado fiável e que resistiu durante cerca de 1400 anos.
De facto, foi só no final do século XIX que os investigadores começaram a estudar a possibilidade das cefaleias, especialmente a enxaqueca, serem o resultado de alterações da resposta do organismo a determinados estímulos.
Independentemente da forma como se manifesta, todos a definem geralmente como "dor de cabeça". Porém, na realidade, a doença assume um nome diferente conforme as características específicas da dor.
Para melhor definir este conceito, a Sociedade Internacional de Cefaleias catalogou diversas formas clínicas de cefaleia que, por sua vez, se agrupam em cefaleias primárias e secundárias.
CEFALEIAS PRIMÁRIAS
São todas as que não dependem de nenhuma doença existente, ou seja, são autónomas e apresentam dores ou distúrbios locais e/ou mal-estar geral. Destas fazem parte:
a) a enxaqueca (que representa a forma mais comum)
b) a cefaleia de tensão
c) a cefaleia em "cluster"
a) A enxaqueca manifesta-se com uma dor latejante, de média ou forte intensidade, que pode atingir apenas uma parte do crânio, mas que pode estar localizada na nuca ou ser difusa, com duração variável entre poucas horas e três dias. Pode ainda ser antecedida de sintomas visíveis, chamados aura (visão enevoada, aparecimento de relâmpagos de luzes coloridas) e acompanhada de náuseas, vómitos, intolerância à luz (fotofobia) e aos sons (fonofobia). As cefaleias de tipo "enxaqueca" pioram quase sempre com a actividade física, ainda que ligeira, como por exemplo caminhar.
b) A cefaleia de tensão surge lentamente e provoca uma dor opressiva, de "capacete", por vezes acompanhada de náuseas, que abrange toda a cabeça. Relativamente à enxaqueca, a intensidade da dor é menor. A cefaleia de tensão pode ser episódica ou crónica se a dor estiver presente durante mais de 180 dias por ano ou 15 dias por mês.
c) A forma mais rara de cefaleia é a cefaleia em "cluster", caracterizada por dor intensa, semelhante a um óculo colocado dentro do olho e que penetra até ao cérebro. Atinge de forma prevalente os homens e afecta apenas um dos lados do rosto. A dor pode ser associada a vermelhidão de um olho, com lacrimejo e congestão nasal. As crises podem durar de 15 a 180 minutos, ocorrer várias vezes por dia e durante períodos de 30 a 40 dias consecutivos. As raras mulheres que sofrem destas cefaleias (cefaleia do suicídio) afirmam que a intensidade da dor é superior à do parto.
CEFALEIAS SECUNDÁRIAS
São o reflexo de uma patologia existente e a sua frequência ronda os 15 a 20% de todos os casos de cefaleia persistente. É indispensável diagnosticá-la com precisão, pois só melhora ou desaparece se a doença de que é manifestação for identificada e eliminada.
Entre as doenças que podem desencadear a cefaleia incluem-se a hipertensão arterial, a insuficiência hepática, renal ou pulmonar, a anemia, as intoxicações agudas ou crónicas, as doenças ósseas e articulares do crânio e do pescoço (artrose cervical), as doenças oftálmicas (como o glaucoma ou o estrabismo) e do nariz (sinusite), as doenças da boca e dos dentes (especialmente as cáries), da garganta (faringite, bronquite), dos ouvidos (otite) e as perturbações digestivas. A cefaleia por abuso de analgésicos também é bastante frequente.
Como se manifesta:
A enxaqueca pode ser classificada de dois modos: Quem sofre desta doença tem normalmente cefaleias que duram de 4 a 72 horas, acompanhadas de náuseas e de um aumento da fotosensibilidade e/ou da fonosensibilidade, que podem recorrer (na prática, ter "recaídas") algumas horas após o fim do efeito do fármaco. Também conhecida por enxaqueca "clássica", é antecedida por um distúrbio neurológico, caracterizado por alterações dos campos visuais, como o aparecimento perante os olhos de relâmpagos de luzes coloridas e enevoamento da vista. Por vezes, o campo visual pode estreitar-se, dando a sensação de se estar a olhar por um óculo. Além disso, podem estar presentes perturbações neurológicas, como formigueiro ou entorpecimento das mãos e dos pés. Geralmente, os sintomas desenvolvem-se gradualmente num período de 5 a 20 minutos, não durando normalmente mais de 60 minutos. Na hora que antecede o aparecimento dos sintomas neurológicos da aura, surgem frequentemente cefaleias, náuseas, fotofobia.· Enxaqueca sem aura
APRESENTAÇÃO DA CRISE
A crise de enxaqueca pode subdividir-se em 4 fases bem distintas, todas elas correspondentes a situações fisiológicas e clínicas diversificadas:
COMO RECONHECÊ-LA
Em síntese, a enxaqueca tem características bem definidas, que podem resumir-se do seguinte modo:
vómitos, palidez, vertigens
Enxaqueca crónica paroxística
Esta forma particular de enxaqueca provoca crises semelhantes às da cefaleia histamínica: dor localizada em torno da órbita ocular, com envolvimento do maxilar e do queixo, lacrimejo, obstrução nasal, abatimento e edema das pálpebras, vermelhidão do rosto. Tem uma incidência aumentada (pelo menos 5 por dia).
Enxaqueca hemiplégica familiar
É uma forma muito particular de enxaqueca, de origem genética, assim chamada porque, durante a crise, os músculos de um dos lados do corpo ficam paralisados.
As causas:
As cefaleias primárias, das quais a enxaqueca faz parte, representam ainda hoje um problema complexo dado não se conhecer a "verdadeira e principal" causa desencadeante. Com efeito, o que é considerado como causa (o stress, as emoções, as tensões, as alterações climáticas, as oscilações hormonais características do ciclo menstrual, etc…), são, na realidade, causas concomitantes, ou seja, factores que acentuam e favorecem o aparecimento da cefaleia, atingindo pessoas que já são predispostas.
Predisposição física
O indivíduo que sofre de enxaqueca é, portanto, uma pessoa mais sensível ao estímulo e que se adapta mal às mudanças do ritmo de vida e das condições do ambiente (luz-sombra, vigília-sono, variações metereológicas, etc). Cientificamente, esta hipersensibilidade aos estímulos depende, provavelmente, do mau funcionamento do mecanismo que regula as sensações dolorosas ao nível do cérebro.
Hipóteses sobre a sua origem
As causas das cefaleias são ainda, em grande parte, desconhecidas. Até há algum tempo considerava-se que a cefaleia era um fenómeno vasomotor, desencadeado pela vasoconstrição (contracção) dos vasos intracranianos e pela vasodilatação (dilatação) dos vasos extracranianos. Actualmente, considera-se uma verdadeira doença do sistema nervoso, ou seja, uma série de comunicações erradas entre grupos de neurónios (as células do cérebro), que determinam contracções e dilatações dolorosas dos vasos sanguíneos da cabeça. De facto, na origem da dor estão implicados os vasos sanguíneos que se encontram no exterior do cérebro. Estes vasos, no momento da crise, dilatam-se e estreitam-se, estimulando as terminações nervosas na zona (em especial o nervo trigémeo) e libertando substâncias que provocam dor.
O papel da serotonina
A ciência moderna demonstrou que a serotonina, um neurotransmissor natural, cuja missão é transmitir os impulsos nervosos de uma célula para outra do cérebro, pode desencadear determinadas respostas nas células cerebrais, que podem ter um efeito nas crises de enxaqueca. Esta consideração teve início quando se descobriu que a quantidade de serotonina na urina de um doente aumentava frequentemente durante uma crise. Em seguida, notou-se que no momento em que se verificava um aumento dos níveis de serotonina na urina, o seu nível no sangue diminuía. Estas e outras observações levaram à formulação da teoria de que as cefaleias poderiam estar associadas a uma diminuição da quantidade de serotonina que chega ao cérebro.
A enxaqueca menstrual
Nas mulheres, o aparecimento da enxaqueca depende muito da regulação dos níveis hormonais. O mal-estar está associado ao ciclo menstrual (normalmente entre dois dias antes a dois dias depois do 28º dia) coincidindo também, em alguns casos, com a ovulação. O motivo reside na brusca diminuição do nível de estrogéneos que se regista antes do fluxo menstrual e que impede a libertação das endorfinas, uma substância produzida pelo cérebro e que funciona como analgésico natural, favorecendo a produção de prostaglandina, a substância envolvida na manifestação da dor. Em contrapartida, a dor desaparece quando as hormonas estabilizam. Isto sucede quer na pós-menopausa (quando o nível de estrogéneos diminui), quer na gravidez, quando o nível de estrogéneos, que é elevado, se mantém constante durante diversos meses. Também os contraceptivos orais podem ter diversos efeitos sobre a enxaqueca; geralmente, se uma mulher já sofre desta perturbação é provável que piore com a pílula,. No entanto, em alguns casos, a administração do contraceptivo melhora os sintomas nas mulheres que sofrem de enxaqueca. Algumas mulheres queixam-se de acentuação das cefaleias nos dias da suspensão da pílula, nos quais se verifica uma brusca diminuição do nível de estrogéneos.
A hipótese do magnésio
Na génese da enxaqueca parece também estar envolvida uma carência em magnésio. Segundo estudos recentes, a falta neste elemento a nível do cérebro pode contribuir para aumentar o limiar de excitabilidade dos estímulos, assim como pode explicar a vasoconstrição que precede a vasodilatação dolorosa. Com base nestes dados estão a fazer-se algumas investigações dirigidas ao estudo de uma terapêutica à base de magnésio para diminuir as crises.
Óxido nítrico
Finalmente, a vasodilatação que se verifica durante a crise de enxaqueca pode ser provocada por um excesso de óxido nítrico, um gás que se derrama no interior dos vasos cerebrais, provocando a sua dilatação e que está também envolvido em numerosas funções do organismo (entre as quais a regulação do tónus muscular que circunda cada artéria). No caso da cefaleia, esta formação de gás leva à compressão dos nervos cranianos, provocando a dor.
Outros factores desencadeantes
Há outros factores que podem determinar a crise de enxaqueca:
Para o diagnóstico de enxaqueca, é necessário dispor dos critérios de avaliação dos sintomas, de modo a poder diferenciar a doença de outras perturbações, entre as quais outras formas de cefaleias. Estes critérios são instrumentos que se tornaram fundamentais na prática clínica diária. São:
· ENXAQUECA SEM AURA- ter tido pelo menos cinco ou mais crises de cefaleias, cada uma delas com a duração de 4 a 72 horas e, pelo menos, duas das seguintes características :
- unilateral
- latejante
- de intensidade variável, entre moderada a grave
- agravada pela actividade física
- presença, durante a cefaleia, de, pelo menos, um dos seguintes sintomas:
- náuseas e/ou vómitos
- fotofobia e fonofobia
· ENXAQUECA COM AURA
- ter tido duas ou mais crises, com pelo menos três das seguintes características:
- um episódio de aura completamente reversível
- aura que se desenvolve gradualmente durante não menos de 4 minutos
- dois ou mais sintomas de aura que se manifestam sucessivamente
- duração máxima da aura de 60 minutos
- aparecimento da cefaleia no período de 60 minutos em que dura a aura
ESCALA MIDAS
Para avaliar o impacto que a enxaqueca tem sobre a vida do indivíduo foi criada a Escala MIDAS (Migraine Disability Assessment Scale) que permite ao médico determinar com rapidez e simplicidade o grau de enxaqueca e identificar o tratamento mais apropriado para cada doente. Trata-se de um questionário que examina os três últimos meses da vida do doente e considera diversas áreas de incapacidade, nomeadamente escola e trabalho, actividade doméstica, actividades sociais e tempos livres. Conforme a pontuação obtida, a enxaqueca será depois classificada de grau I (incapacidade mínima ou ausente), grau II (incapacidade ligeira), grau III (incapacidade moderada), grau IV (incapacidade grave).
OUTRAS AVALIAÇÕES
Para além da história específica da dor de cabeça, o médico deve informar-se sobre o estado geral de saúde do doente e os seus hábitos de vida, perguntar se o doente já sofreu traumatismos cranianos, se teve meningite, se sofre de hipertensão arterial (pressão elevada), problemas da vista ou dos ouvidos e, já que a genética é um aspecto importante, se outras pessoas da família sofrem habitualmente de dores de cabeça. A conversa com o médico deverá também servir para verificar se o doente sofre de ansiedade ou depressão.
HISTÓRIA CLÍNICA
Para fazer um diagnóstico correcto é indispensável submeter o doente a uma consulta de clínica geral e a uma consulta de neurologia. Durante a consulta, o médico deverá avaliar a presença ou incidência de alguns sinais/sintomas, como a pressão arterial, a frequência cardíaca, a mobilidade na flexão do pescoço, os campos visuais, os reflexos da pupila, a função motora do rosto e dos membros, a deambulação, que podem ser anormais numa enxaqueca e que deverão levar à requisição de outros exames.
Exames direccionados
DOENÇAS ASSOCIADAS À ENXAQUECA
Quem sofre de enxaqueca pode também sofrer de doenças psiquiátricas, como depressão, ansiedade, ataques de pânico, epilepsia ou asma e angina.
Enfrentar os problemas relacionados com a enxaqueca não é fácil. Segundo um estudo recente, levado a cabo pela Demoskopea numa amostra representativa da população italiana composta por 2001 pessoas com idades entre os 18 e os 65 anos, cerca de 37% dos inquiridos que afirmaram sofrer de cefaleias não tomam medicamentos nem recorrem a outras terapêuticas e, enquanto 60% procuram soluções para bloquear a dor mal esta se manifesta, apenas 3% tomam medicamentos para tratar as causas ou prevenir a perturbação. Além da propensão para tomar medicamentos ser mais elevada nas mulheres (70%), quando analisamos as profissões dos entrevistados, o recurso aos medicamentos é mais elevado nas domésticas (72%) e menor entre os estudantes (50%).
COMO ESCOLHER O TRATAMENTO ADEQUADO
Graças a novas estratégias de tratamento, a cefaleia pode actualmente, ser enfrentada com êxito, quer no caso de crises esporádicas, quer quando são recorrentes. É também possível, neste último caso, actuar com uma terapêutica preventiva. Após o diagnóstico seguro de enxaqueca, para prescrever o tratamento adequado os médicos seguem geralmente uma abordagem "gradual". Inicialmente, são prescritos analgésicos e, caso estes se revelem ineficazes, é administrada uma associação de diversos fármacos. A terapêutica mais específica, como os triptanos, é frequentemente administrada apenas na terceira ou quarta fase após todos os outros fármacos se terem revelado ineficazes. No entanto, foi recentemente referido que o tratamento "estratificado" é mais eficaz. De facto, este permite administrar, logo de início, o fármaco mais adaptado ao tipo de enxaqueca a tratar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário